sexta-feira, 3 de junho de 2011

Levantados do chão. A partir do Alentejo, porque não?



"Do chão sabemos que se levantam as searas e as árvores, levantam-se os animais que correm os campos ou voam por cima deles, levantam-se os homens e as suas esperanças. Também do chão pode levantar-se um livro, como uma espiga de trigo ou flor brava. Ou uma ave. Ou uma bandeira.”  diz Saramago, a propósito do seu livro Levantado do chão. Um livro que que nos fala do  Alentejo e dos alentejanos, da sua luta pela sobrevivência e da notável capacidade de resistência, reflectida na história das 3 gerações da família Mau-Tempo. Uma ficção que se cruza com a realidade alentejana dos primeiros 75 anos do século XX, embora o horizonte temporal da obra se estenda até 5 séculos antes, o horizonte espacial chegue  à França, por conta da emigração, e o horizonte histórico inclua, ainda que ao de leve, a queda da monarquia e as duas guerras mundiais.  

"O que mais há na terra, é paisagem”, é assim que Saramago inicia o livro. Com a paisagem. Uma paisagem tão atormentada como aqueles que a trabalham. Uma paisagem que não é apenas suporte da narrativa mas sim um elemento activo, um agente modelador da história. Saramago dá-lhe um tal destaque que, a partir dela, o leitor pode desenhar não só a geografia do território, como também, e sobretudo, descobrir a geografia dos afectos da paisagem alentejana. O autor apropria-se do conceito de paisagem para abordar a condição humana e afirmar a mensagem política que este livro encerra. É esta mensagem que importa resgatar hoje, neste tempo outro, que parece querer esquecer o que do chão se pode levantar.

A história acontece no Alentejo Central. No concelho de Montemor-o-Novo, é Monte Lavre que colhe a maior parte da narrativa de Levantado do Chão. No entanto, a história de Monte Lavre é por demais semelhante às histórias contadas pelos mais velhos, noutras partes do Alentejo. A coincidência entre os descritores literários e os descritores reais da paisagem  sócio-económica e biofísica do Alentejo confere realismo à narrativa do autor. Do chão levantam-se as searas e o montado de sobro e azinho, ao qual está associado a pastorícia. Estes elementos são a base económica do Alentejo e marcam os ciclos de trabalho e de pousio do trabalhador rural alentejano. 

As estradas e os caminhos assumem, nesta história, um significado especial. Sublinham a itinerância que caracterizou o alentejano desde a monarquia até à revolução dos cravos: a errância em busca de trabalho, as viagens forçadas com destino às salas de interrogatório da polícia política, a ida à tropa e à guerra, os encontros clandestinos, etc.

Mas Saramago vai para além do realismo. Com a subjectividade que lhe é característica, destaca da paisagem, e sempre de forma pertinente, os animais domésticos. As histórias do coelho, do porco ou do cão são apontamentos trágicos,  pois aos animais domésticos cabe-lhes o papel de espelho da degradação da condição humana do trabalhador rural, tão próximo da animalidade, qual animal laborans. Não menos pertinente é o facto de as espécies selvagens apresentarem um comportamento semelhante ao real, à excepção do milhano e da calhandra, que estabelecem diálogo entre si, da formiga, que testemunha a tortura de Germano Santos Vidigal (personagem real) ou da lebre curiosa que se aproxima do jornal para ver as notícias. Aqui houve lugar à ironia e à metáfora. 

À paisagem real, ao alcance do olhar do homem, Saramago acrescenta mais dois níveis. A paisagem infra, ao alcance do olhar da formiga que assiste à tortura do homem. Quanto a esta, é sabido que "as paisagens morrem porque as matam,  não porque se suicidem". E a paisagem supra, ao alcance do olhar dos anjos, que a partir da varanda corrida que dá a volta ao horizonte, espreitam a vida humana.

Por vezes homo faber, por vezes animal laborans, o alentejano apanha estrume, alqueiva, argola, arranca, arroteia, cava, ceifa, chacota, colhe, caça, debulha, descortiça, desmata, empoa, enfarda, enforna, ensaca, enxerta, estruma, gadanha, lavra, limpa, malha, monda, pastoreia, planta, poda, rechega, semeia, serroteia, sulfata, surriba, terreia, tosquia, vareja, trabalha. A riqueza do léxico de Saramago, que o distingue enquanto autor, acentua o dramatismo da história alentejana ... E "enquanto as vamos nós aqui saboreando, vão eles fazendo o que elas dizem, não é nada connosco, nós só sabemos de palavras”.

As três gerações fictícias da história dos Mau-Tempo contam a transformação real da mentalidade alentejana. De pessoa a pessoa, através de segredos trocados por caminhos de mato, e de silêncios partilhados em salas de tortura, a consciência política foi ganhando lugar e força. O animal laborans subiu ao patamar mais elevado da humanidade ao transformar-se em homem de acção (política), quando o país  vivia sob a opressão da ditadura e o Alentejo sob a prepotência dos senhores Lambertos, Norbertos, Adalbertos, Floribertos e Sigisbertos. Manuel Espada, João Mau-Tempo, Sigismundo Canastro e tantos outros, desta e de outras histórias, despertaram ainda antes da revolução dos cravos. Com coragem. As greves alentejanas colocaram o Alentejo no mapa da Europa política.

Trinta e sete anos se passaram sobre a história levantada do chão. O animal laborans espreita e preguiça sobre o supérfluo, o homo faber está subsídio-desempregado e o país sufoca. Por onde anda o homem de acção? 

"Vivemos num país livre e todos temos de dar contas". Façamos pois valer esta consciência política, aparentemente adormecida. A partir do Alentejo, porque não? 

fc/03Junho2011













terça-feira, 5 de abril de 2011

Lila





















O corpo fragilizado pelos ossos difíceis, mesmo depois de esgotado pelo tempo, não foi obstáculo para esta mulher de grande sensibilidade, sempre impelida para a acção, atenta à necessidade alheia e inteligente na intervenção.

A sala da sua casa foi ponto de encontro obrigatório. Ali chegavam os familiares, os amigos, os conhecidos, os desconhecidos, os mais necessitados. Chegavam também notícias do mundo. O próximo e o distante. Entre tertúlias políticas e chás aconchegantes, tudo era comentado à luz da desconcertante condição humana, num exercício de compreensão e tolerância. Para ela, o mais importante de tudo centrava-se, invariavelmente, na formação pessoal e profissional de cada um. 

Quanto ao amor, e sempre a propósito, muitas histórias contou. As histórias perdidas na História de Garvão, histórias com rosto porque lhe interessavam as pessoas, eram contadas de modo muito próprio. Nessas alturas, os óculos eram esquecidos no desalinho do cabelo branco e os olhos vivos fitavam-nos directamente. Suspensa na sua voz e encantada pela sua expressão, deixava-me arrebatar pelo arquear das sobrancelhas, que se moviam ao ritmo do humor, ora implícito ora explícito, das suas palavras. O sorriso complacente ou a gargalhada contagiante esclareciam a moral de cada uma das histórias.

Sobre a religião dizia: "o verdadeiro religioso é aquele que não presta o culto", referindo-se às igrejas. Com o elogio à vida adiou a morte o mais que pôde. Partiu a 2 de Abril de 2008, aos 93 anos, depois de ter pedido um beijo às filhas.

Esta irrequieta senhora é inesquecível pela sua força, sentido de humor, abertura, actualidade, simplicidade e generosidade. Foi privilégio meu ter partilhado com ela infinitas tardes e serões de Verão, em Garvão.

O seu nome? Lila.


FC/Abril2011

domingo, 3 de abril de 2011

Rosas de Dezembro





















Rosas vermelhas, cor forte. 
Grito surdo, sofrido.
Impossível absurdo.
Uma luta desigual. Mortal.

Não fosse tão desigual o desafio da morte,
tão fora do momento,
ela teria vencido.
Como vencidos foram os desafios da vida.

Indiscreta na altura, discreta na postura,
mulher de afecto férreo e elevado,
amor dedicado e prático,
virtude pública, humor privado.

Não fosse tão desigual...

Rosas brancas,
porque guardam as sete cores da luz.
Rendição?
Não. Reencontro com os seus. Em silêncio.

Ganhámo-la quando a perdemos.
Com dor, com muita dor.
Dor física, intensa, como a dos nascimentos.
Um paradoxo exclusivo dos grandes.

Foi desigual.

Rosas de Garvão, ainda em botão. 
Um novo ciclo, um princípio. 
Um qualquer outro princípio.
Nas suas mãos. Suas.

Suas porque da sua terra.
Como seus foram o marido, os filhos, os netos.
Como seus foram o pai, a mãe, os irmãos.
Como seus foram os sobrinhos. Eu.

Como minhas serão todas as manhãs de Verão,
quando me entrava casa adentro, dizendo:
- Olha! Está tudo a dormir!?
E nos convidava para um café.

Desigual...

Para si, minha tia.
A última rosa.
Pétalas infinitas, incolores, salgadas,
que se soltam quando a saudade aperta.

Para si, minha tia.


FC/Janeiro2011

quinta-feira, 17 de março de 2011

O método Adolf












Em nome de uma crise mais do que económica, inventou-se uma lei que permitiu o agrupamento das escolas de ensino regular, facilitando-se, dizem, a gestão daquilo que deveria ser o pulmão de um povo/nação: a educação. Foi a oportunidade para se confundirem as coisas e meter tudo no mesmo saco. E na confusão oportuna, em nome da lei que regulamenta os agrupamentos mas à sua revelia, pois o processo não cumpriu os procedimentos legais ali previstos, a Escola Profissional de Desenvolvimento Rural de Alter do Chão (EPDRAC) foi anulada na sua diferença.

Considerada a primeira do género, a EPDRAC forma jovens técnicos de gestão equina e cinegética e, em paralelo, possibilita a formação de monitores de equitação, reconhecidos pela Federação Equestre Portuguesa. Tem dimensão nacional e reconhecimento internacional, comprovados pelos alunos que recebe de todos os pontos do país, incluindo ilhas, e de Espanha.

Parceira nas diversas formas da arte equestre, desde a arte de montar a cavalo até ao apuramento genético da raça lusitana, a EPDRAC, enquanto formadora de jovens especializados nesta área, é reconhecida pelos seus pares, a Coudelaria de Alter, a Coudelaria Nacional e a Escola Portuguesa de Arte Equestre, apenas para citar as entidades públicas que partilham a responsabilidade de preservar o património genético do cavalo lusitano, cuja importância é indiscutível no contexto da biodiversidade genética animal, tanto a nível nacional como a nível mundial, reforçado pelo património histórico que lhes está associado e que importa sublinhar.

A EPDRAC é, por todas as circunstâncias, única e irrepetível. A proximidade física que existe entre a Coudelaria de Alter-Real e a EPDRAC conferem a esta escola profissional um carácter distinto. Ali, a partilha de vivências e ensinamentos entre professores e alunos vai muito para além das paredes da sala de aula ou mesmo da escola. Um exemplo do lema “todos por um e um por todos”, no cumprimento da sua essência. Um exemplo também do verdadeiro desenvolvimento rural, cujo maior testemunho é o povo de Alter do Chão, que acolhe a escola no seio da sua família.

Para esta vila alentejana, a EPDRAC é uma mais-valia socioeconómica, pois traz ao concelho cerca de centena e meia de jovens que aqui se instalam e vivem durante nove meses, e uma mais-valia cultural, na medida em que a escola profissional dinamiza o que distingue esta terra: o cavalo de Alter. Esta distinção promove o prestígio e a identidade do povo de Alter do Chão.

Num processo vertiginoso e arrebatador, desrespeitando o regime jurídico das escolas profissionais no qual se enquadra, a EPDRAC passou a ser vista e tratada como uma escola de ensino regular, confundida com a escola-mãe (sede do agrupamento), que é indistinta das restantes escolas de ensino regular e cujo nome se encontra no fim da lista do ranking nacional de escolas portuguesas. O não cumprimento dos procedimentos legais, que são o garante da legitimidade da criação e da gestão dos agrupamentos escolares, traduziu-se, inevitavelmente, na atribuição de um cheque em branco aos gestores do agrupamento que, alheios ao projecto pedagógico da EPDRAC, se comportaram como uma comissão desinstaladora da escola profissional. Sob a sua gestão, os alunos da EPDRAC passaram a integrar, de forma compulsiva, a Escola EB 2,3/S Padre José Agostinho Rodrigues.

Por incompetência ou não, fingiu-se que a EPDRAC era a Escola Secundária de Alter do Chão. Por coincidência ou não, foi vedada a possibilidade de novas turmas, não obstante o número suficiente de pré-inscrições na EPDRAC. Perante a indignação dos pais que reclamaram a identidade da EPDRAC, a equipa gestora do novo agrupamento foi substituída. Aparentemente, a escola profissional recuperará a sua identidade e autonomia. Mas insiste-se na EPDRAC agrupada. O cheque continua em branco…

A distância entre os projectos educativos da EPDRAC e do ensino regular marcará a marcha para o isolamento da escola relativamente aos seus pares, que pertencem ao mundo da equitação e da cinegética e não ao mundo da escolaridade não profissional. A EPDRAC perderá a vertente profissional e a vertente de desenvolvimento rural. Dentro das malhas da indistinção e sujeita ao regulamento interno da escola mãe, a EPDRAC deixará de ter sentido para a Coutada do Arneiro. Outrora uma oportunidade… agora simplesmente uma despesa. A passos rápidos, a EPDRAC será anulada do sistema. Findar-se-á à pena de um qualquer burocrata em apenas alguns (poucos) anos lectivos. Cumpra-se!

Mas aqui não se cumpriu a lei. Mantém-se, por isso, a esperança de retorno.

Reparemos no método que conduz à anulação da distinção desta escola de excelência. Aplicado de uma forma algo distraída mas coerciva, este método, e falamos apenas do método, faz lembrar um outro: o de Adolf. O Adolf chamava-se Hitler e o seu método baseava-se na anulação da distinção. Neste caso, aplicado directamente às pessoas e no exímio cumprimento da lei alemã, alterada em função do método. A lei alemã legalizou lentamente, ao longo dos anos que antecederam a 2.ª Guerra Mundial, a inexistência de uma igualdade jurídica que garantisse os direitos de um povo distinto. O método aplicou-se aquilo que jamais alguém poderia imaginar: ao próprio povo alemão. Morreram mais de 6 milhões de judeus, entre outros.

A distinção é uma capacidade exclusivamente humana, sendo a esfera pública e política o único garante da possibilidade de distinção. A esfera económica é outra coisa. Em nome da nossa humanidade, estejamos atentos.

FC/Janeiro2011

Nota: depois de várias reuniões solicitadas por um grupo de pais, formado exclusivamente para este efeito, a EPDRAC tornou à tutela da Agricultura.

quarta-feira, 16 de março de 2011

A nossa democracia















Manifestação da Geração à Rasca - dia 12 de Março


Está escrito que Portugal é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas e no aprofundamento da democracia participativa.

Vale a pena lembrar os números redondos das Presidenciais de 2011:

Universo de eleitores: 8 milhões
Votantes: 4,5 milhões. Não votantes: 3,5 milhões
Brancos e nulos: 280 mil (6% dos votantes)

Votantes em Cavaco Silva: 2 milhões
2 milhões de 4,2 milhões de votantes perfaz 53%.
2 milhões de 8 milhões perfaz 25%

Ou seja, vitória esmagadora!!!! do candidato Cavaco. Viva o Rei!

A democracia pratica-se, não basta estar escrito ou reclamá-la.


FC/Março2011