terça-feira, 5 de abril de 2011

Lila





















O corpo fragilizado pelos ossos difíceis, mesmo depois de esgotado pelo tempo, não foi obstáculo para esta mulher de grande sensibilidade, sempre impelida para a acção, atenta à necessidade alheia e inteligente na intervenção.

A sala da sua casa foi ponto de encontro obrigatório. Ali chegavam os familiares, os amigos, os conhecidos, os desconhecidos, os mais necessitados. Chegavam também notícias do mundo. O próximo e o distante. Entre tertúlias políticas e chás aconchegantes, tudo era comentado à luz da desconcertante condição humana, num exercício de compreensão e tolerância. Para ela, o mais importante de tudo centrava-se, invariavelmente, na formação pessoal e profissional de cada um. 

Quanto ao amor, e sempre a propósito, muitas histórias contou. As histórias perdidas na História de Garvão, histórias com rosto porque lhe interessavam as pessoas, eram contadas de modo muito próprio. Nessas alturas, os óculos eram esquecidos no desalinho do cabelo branco e os olhos vivos fitavam-nos directamente. Suspensa na sua voz e encantada pela sua expressão, deixava-me arrebatar pelo arquear das sobrancelhas, que se moviam ao ritmo do humor, ora implícito ora explícito, das suas palavras. O sorriso complacente ou a gargalhada contagiante esclareciam a moral de cada uma das histórias.

Sobre a religião dizia: "o verdadeiro religioso é aquele que não presta o culto", referindo-se às igrejas. Com o elogio à vida adiou a morte o mais que pôde. Partiu a 2 de Abril de 2008, aos 93 anos, depois de ter pedido um beijo às filhas.

Esta irrequieta senhora é inesquecível pela sua força, sentido de humor, abertura, actualidade, simplicidade e generosidade. Foi privilégio meu ter partilhado com ela infinitas tardes e serões de Verão, em Garvão.

O seu nome? Lila.


FC/Abril2011

domingo, 3 de abril de 2011

Rosas de Dezembro





















Rosas vermelhas, cor forte. 
Grito surdo, sofrido.
Impossível absurdo.
Uma luta desigual. Mortal.

Não fosse tão desigual o desafio da morte,
tão fora do momento,
ela teria vencido.
Como vencidos foram os desafios da vida.

Indiscreta na altura, discreta na postura,
mulher de afecto férreo e elevado,
amor dedicado e prático,
virtude pública, humor privado.

Não fosse tão desigual...

Rosas brancas,
porque guardam as sete cores da luz.
Rendição?
Não. Reencontro com os seus. Em silêncio.

Ganhámo-la quando a perdemos.
Com dor, com muita dor.
Dor física, intensa, como a dos nascimentos.
Um paradoxo exclusivo dos grandes.

Foi desigual.

Rosas de Garvão, ainda em botão. 
Um novo ciclo, um princípio. 
Um qualquer outro princípio.
Nas suas mãos. Suas.

Suas porque da sua terra.
Como seus foram o marido, os filhos, os netos.
Como seus foram o pai, a mãe, os irmãos.
Como seus foram os sobrinhos. Eu.

Como minhas serão todas as manhãs de Verão,
quando me entrava casa adentro, dizendo:
- Olha! Está tudo a dormir!?
E nos convidava para um café.

Desigual...

Para si, minha tia.
A última rosa.
Pétalas infinitas, incolores, salgadas,
que se soltam quando a saudade aperta.

Para si, minha tia.


FC/Janeiro2011