quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

A cidade







Rio de Janeiro parece nascer de um desejo de abraço. Lá, onde o Cristo brasileiro, guardador de sonhos, se firma sobre o excessivo gnaisse. A seus pés o Corcovado, atapetado por farta vegetação. Acidente natural que a Geologia explicará melhor, substrato perfeito para a construção (des)humana que se derrama encosta abaixo, alapada à vida.
 
Como todos os rios, o Rio não é excepção. Serpenteia perigosamente por entre morros, em busca do mar. Um rio quente e húmido, cor de tijolo, cor de gente. Gente com traço africano e samba no pé. Que esmaga o limão em açúcar e cachaça. Que se apodera da língua portuguesa. Que não a reconhece no português. Gente diferente, outro fado.

Mais a norte, os leitos do Rio enchem-se de restos de noites quentes e dias abafados. Indícios de fome (dessa e da outra), de sede saciada (dessa e da outra) e de crime (desse e do outro). Desmazelo, descautela. Nome técnico: resíduos sólidos humanos. Nome vulgar: lixo. Mais a Sul, a construção humaniza-se e o lixo recolhe-se. O Rio chega limpo à saia da “princesinha do mar”.

O Rio respira, transpira, transborda. Sem pudor. Grafitado da nascente à foz. “Enquanto vivo, danço. Enquanto danço, existo”, lê-se. Filosofia atrevida que Descartes não levará a mal, certamente. América do Sul, outro calor.

Rio é vida que o poeta escreve e o polícia vigia. Indiferente, a garota passa por eles, “num doce balanço, a caminho do mar”. Não há coisa mais linda, dirão uns e outros. Dirão todos. Afinal o consenso é possível.

Ao longe, o gigante de betão armado e pedra-sabão parece esperar o abraço que o distrairá da sua função. Só deste modo se tornará carioca. Talvez até toque violão. Se assim vier a acontecer, Cristo não precisará de tornar a esconder-se por detrás do nevoeiro.

FC/dez2014







sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Para o Filipe




Poesia nasceste tu, 
desfazendo toda a norma. 
Cresceste sob a sombra intermitente do limoeiro, 
amadureceste na medida dos seus limões. 

Voas agora, fora da asa,

em busca da abundância de seres feliz. 
Coleccionando traços.


Os traços, disseste tu, 

antecipando toda a engenharia,
são linhas que unem.
... tem gente que nasce poesia.


FC/14nov2014


nota: 

(Palavras roubadas a Manoel de Barros, que descobri no dia em que morreu, e a Filipe Cunha Marques, que conheci no momento em que nasceu. Limitei-me a unir os traços.)

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Ausência de mundo




A propósito de uma certa fotografia, publicada numa certa página de um certo livro recentemente editado, escola e arte à parte, à vingança contraponho a reconciliação e escrevo sobre o perdão, recuperando partes de um comentário que escrevi, na sequência de um bom texto sobre um bom filme, escrito por um bom amigo.

A vingança é uma resposta violenta, tão indesejável como previsível, que prolonga infinitamente a cadeia de acções/reacções que ela própria inicia, aprisionando executor e vítima ao invés de os libertar. O seu oposto é o perdão. Para Hannah Arendt, filósofa em quem me inspiro, “o perdão é a única reacção que não re-age apenas, mas age de novo, e inesperadamente, sem ser condicionada pelo acto que a provocou e de cujas consequências liberta tanto o que perdoa como o que é perdoado”. Associado ao perdão está necessariamente o reconhecimento da culpa, sempre pessoal e intransmissível, talvez a parte mais difícil de um litígio ou desentendimento.

O perdão liberta os homens daquilo que fizeram sem saber, permitindo-lhes um novo começo, uma nova ordem. Faz todo o sentido a expressão atribuída a Jesus: “perdoai-os Senhor, porque eles não sabem o que fazem”. Quando os homens sabem o que fazem, quando têm intencionalidade, não é possível o perdão mas apenas a reconciliação, por via da compreensão.

A faculdade de perdoar nasce de uma outra faculdade: o respeito. O respeito é dirigido a alguém que nos desperta consideração e amizade e vai para além das qualidades ou actos que esse alguém tenha praticado. O respeito é equiparado ao amor, quando falamos em perdão. Totalmente receptivos a quem alguém é, independentemente do que esse alguém fez.  Mas ao contrário do amor, tão privado e tão íntimo, a pessoa respeitada não precisa ser próxima ou íntima. O respeito acontece à distância, faz parte do mundo. 

Através do amor aprendemos o respeito, através da bondade aprendemos o perdão ou a reconciliação. Através do amor e da bondade, apre(e)ndemos o mundo. Pobres daqueles que não conhecem o amor ou a bondade. Não aprenderam o respeito ou o perdão. Vivem num mundo por si despersonalizado, sem identificação, sem distinção [deixo aqui uma pequena nota à autora: mencionar os nomes que nos antecedem não é apenas obrigatório, é, sobretudo, um testemunho da nossa elevação]. Estas pobres pessoas vivem um não-mundo. Para os seus actos, o nosso esforço de compreensão. 



fc/ago2014

(imagem adaptada de uma fotografia de Pedro Yglesias de Oliveira)

O fascínio do cavaleiro



Sobre a verdade e a mentira muita coisa se poderá dizer. Tanto a verdade como a mentira são existências, evidências, insistências, aparências. Mentiras verdadeiras ou verdades mentirosas. Não interessa. Tudo existe, em estado puro ou nem por isso. Tudo é possível ficcionar, afirmar, jogar. Entre os homens é assim. Cada um fará a destrinça, segundo a sua bondade de carácter.

Ao cavaleiro, porém, não está autorizada a mentira. Simplesmente porque o cavalo não permite fingimentos. Quem não conseguir ser verdadeiro não poderá atingir a perfeição. É nessa verdade que reside o fascínio do cavaleiro. 

Quem dera que assim fosse com tudo o resto. Talvez seja...



FC/28mar/2014
(foto de Pedro Yglesias de Oliveira)

O tempo





Desafio o tempo com o contra-tempo
Agarro o sol, armo a clave
Leio figuras e fracções
Desenho tons e semi-tons
Percorro as linhas com as mãos
Descubro silêncios e sons

Desafio o tempo com um novo tempo
Troco-lhe as voltas, escolho o passo
Nem ventos nem tempestades
Mas uma outra sonoridade
Desafio o tempo com o mesmo tempo
Descubro a humanidade



fc/ago2014

quinta-feira, 1 de maio de 2014

É da vossa livre vontade?




O casamento é um compromisso de paixões.
Por isso íntimo, antes de ser privado. 
Depois público, quando anunciado.
Um compromisso de liberdade 
entre dois pensamentos e dois corações,
livres por definição.

Livres para coincidirem
em cada sílaba dos corpos,
em cada letra suada.

Livres para aprenderem o tempo,
que redesenha os corpos
e reescreve as palavras.

Livres para rasgar horizontes, nesse outro lugar,
onde hormonas e gâmetas aninham a novidade e preparam o milagre.
Vive-se, então, a experiência da educação, aventura maior.      

Na hora dos deuses, o mundo estremece entre infinitos,
antes de revelar esse lugar único, só deles. 
Dos corações. 

Na hora dos homens, o mundo inquieta-se entre desafios,
grafando uma história única, só deles. 
Dos pensamentos.

No final de cada dia, abraçam-se os sonos, dorme o amor.
É da vossa livre vontade?
Todos os dias da vossa vida. Sim!


FC/26abril2014

(Poema dedicado à Manuela e ao Stefan, no dia do seu casamento)